Franscinella riograndensis: nova interpretação revela planta de 296 milhões de anos da Bacia do Paraná com esporos preservados
Pesquisa revisita fóssil descrito há décadas e redefine sua classificação, conectando macro e microfósseis com o auxílio de tecnologias e colaboração entre instituições brasileiras e internacionais.
A paleobotânica brasileira acaba de resolver um enigma: a redefinição de uma planta fóssil descrita há décadas no sul do Brasil e a criação de um novo gênero, Franscinella, para acomodar a espécie agora denominada Franscinella riograndensis (Salvi et al.) Carniere, Pozzebon-Silva, Guerra-Sommer, D. Uhl, Jasper et R. Spiekermann comb. nov. O estudo faz parte da dissertação de mestrado de Júlia Siqueira Carniere, atualmente doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ambiente e Desenvolvimento da Univates (PPGAD). O artigo publicado recentemente na revista científica Review of Palaeobotany and Palynology, reinterpreta o material-tipo anteriormente classificado como Lycopodites riograndensis e estabelece o primeiro registro de licópsidas com esporos in situ nos estratos permianos da Bacia do Paraná.
A descoberta reclassifica a sua taxonômica original e apresenta uma possível resolução de um desafio científico que persistia há mais de 50 anos — encontrar esporos in situ de plantas preservadas em rochas clásticas do Paleozoico Superior (entre 298,9 milhões de anos a 252,17 milhões de anos) para o Brasil. O feito foi possível graças ao modo de preservação do material fóssil, ao conjunto de metodologias de ponta, combinando técnicas de microscopia avançada e uma colaboração interdisciplinar entre instituições de referência no Brasil.
Uma nova visão sobre um fóssil clássico
A espécie Lycopodites riograndensis havia sido descrita originalmente com base em características macro-morfológicas gerais observadas no material fóssil. Essas análises, feitas décadas atrás, consideravam a forma e a disposição dos caules, mas não tinham acesso a informações internas mais detalhadas, especialmente sobre a anatomia e os esporos.
Com o avanço das técnicas de preparação e análise microscópica, a equipe liderada pela Universidade do Vale do Taquari – Univates, por meio do Programa de Pós-Graduação em Ambiente e Desenvolvimento (PPGAD) decidiu revisitar o material-tipo, que estava disponível para estudo na Coleção Paleontológica da Univates. O objetivo era investigar se, a partir de metodologias mais refinadas, seria possível obter dados anatômicos e palinológicos inéditos.
O trabalho empregou microscopia eletrônica de varredura (MEV), moldagem por silicone vinil polissiloxano (VPS) e microscopia de luz transmitida, recursos que permitem visualizar superfícies e estruturas internas com grande ampliação e detalhamento. Essa abordagem revelou elementos-chave que justificaram a redefinição taxonômica, entre eles: ramificação isotômica nos caules, característica típica de algumas licópsidas fósseis; traqueídeos do cilindro vascular com estrutura preservada, importantes para identificar grupos vegetais extintos; e esporos triletes com escultura verrucada preservados in situ, ou seja, ainda dentro das estruturas reprodutivas da planta.
O desafio da preparação e a contribuição do itt Oceaneon
A obtenção dos esporos in situ foi uma etapa decisiva — e complexa. A solução veio com o uso da infraestrutura do Instituto Tecnológico itt Oceaneon, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), especializado na recuperação de microfósseis — como grãos de pólen, esporos e organismos marinhos como radiolários e ostracodes. A equipe do itt Oceaneon aplicou um protocolo específico de recuperação de esporos in situ, este elencado pelos autores do trabalho, que se mostrou eficiente para esse tipo de material.
Do micro ao macro: conectando registros fósseis
Os esporos encontrados em Franscinella riograndensis apresentam morfologia compatível com o gênero palinológico Converrucosisporites, comum em depósitos permianos da Bacia do Paraná. Essa correspondência é relevante porque liga diretamente o registro macrofóssil (partes visíveis da planta) ao registro microfóssil (esporos e grãos de pólen), ampliando a compreensão sobre a vegetação e os ecossistemas do passado.
Na prática, isso significa que os pesquisadores podem agora fazer interpretações mais completas sobre as comunidades vegetais do Permiano, integrando informações de diferentes linhas de evidência. Além disso, essa correlação contribui para estudos de bioestratigrafia, que utilizam fósseis para datar e correlacionar camadas de rochas.
Por que essa descoberta é importante?
A redefinição de Franscinella riograndensis mostra como revisitar fósseis conhecidos com novas ferramentas pode gerar descobertas inéditas. Muitos grupos fósseis, como as licópsidas, foram historicamente enquadrados em gêneros amplos e genéricos, no caso, Lycopodites. Esse tipo de classificação “guarda-chuva” era uma solução prática diante da falta de informações mais detalhadas, mas tende a ser revisado quando novos dados se tornam disponíveis.
O trabalho também evidencia a importância das infraestruturas tecnológicas nacionais e do trabalho colaborativo entre pesquisadores e instituições. A combinação de conhecimentos especializados, acesso a equipamentos de ponta e metodologias inovadoras permitiu resolver um problema científico antigo em cooperação entre instituições do próprio RS.
Do ponto de vista paleobotânico, o registro de licópsidas com esporos in situ na Bacia do Paraná abre novas perspectivas para a reconstrução da flora do Permiano e para o entendimento da evolução das plantas vasculares. Em uma perspectiva científica global, este estudo contribui para o entendimento da diversidade e distribuição das licópsidas herbáceas durante o Permiano no Gondwana, sendo apenas o quinto registro conhecido, o que torna esse tipo de ocorrência rara. Além disso, permite comparações com registros semelhantes em outras regiões do mundo, oferecendo novos dados sobre a evolução e a ecologia desses grupos vegetais no Paleozoico.
O caminho da pesquisa: instituições e financiamento
A pesquisa foi liderada por cientistas da Univates, com participação decisiva do itt Oceaneon/Unisinos na preparação palinológica. O trabalho contou ainda com contribuições da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e de pesquisadores de instituições internacionais do Senckenberg, da Alemanha. Júlia Siqueira Carniere, Ândrea Pozzebon-Silva, Rafael Spiekermann, Lilian Maia Leandro, Margot Guerra-Sommer, Dieter Uhl e André Jasper.
O apoio técnico do Tecnovates (Parque Científico e Tecnológico da Univates) foi fundamental para as etapas de infraestrutura e logística. O projeto recebeu financiamento de agências de fomento à ciência brasileira, incluindo o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
Glossário
Bacia do Paraná – Grande bacia sedimentar que se estende por partes do Brasil, Paraguai, Uruguai e Argentina, contendo rochas de várias idades geológicas.
Bioestratigrafia – Ramo da geologia que utiliza fósseis para correlacionar e datar camadas de rochas sedimentares.
Converrucosisporites – Gênero palinológico baseado na morfologia de certos tipos de esporos fósseis.
Escultura verrucada – Ornamentação superficial de esporos ou pólen caracterizada por projeções arredondadas semelhantes a verrugas.
Esporos triletos – Esporos com uma marca em forma de “Y” resultante do processo de divisão celular na formação do esporo.
Gondwana – Supercontinente que existiu do final do Paleozoico até o Mesozoico, reunindo os atuais continentes do Hemisfério Sul, como América do Sul, África, Antártida, Austrália e Índia.
In situ – Expressão latina que significa “no lugar original”; em paleobotânica, indica que o microfóssil está preservado na posição e local de origem.
Licópsidas (Lycopsida) – Grupo de plantas vasculares primitivas, com representantes atuais como Selaginella e Lycopodium, mas muito mais diversificado no passado.
Material-tipo – Conjunto de fósseis ou espécimes usados para descrever formalmente uma nova espécie.
Microscopia de luz transmitida – Técnica que usa luz passando através da amostra para revelar estruturas internas.
Microscopia eletrônica de varredura (SEM) – Técnica que utiliza um feixe de elétrons para gerar imagens de alta resolução da superfície de uma amostra.
Moldagem por silicone vinil polissiloxano (VPS) – Método para criar moldes detalhados de superfícies, frequentemente usado por dentistas.
Paleozoico Superior – Subdivisão da escala de tempo geológico que abrange os períodos Carbonífero e Permiano, entre aproximadamente 359 e 252 milhões de anos atrás.
Palinomorfos – Microfósseis de origem orgânica, como grãos de pólen, esporos e algumas algas.
Rochas clásticas – Rochas sedimentares formadas pela acumulação e compactação de fragmentos (clastos) de outras rochas ou minerais.
Por Lucas George Wendt
Imagens:
1 a 3 ) Pesquisadora trabalhando com os fósseis - Crédito - Divulgação - Univates
4) Diferentes vistas do material estudado (veja a legenda no texto para mais contexto) - Crédito - Salvi et al. (2025). (a, c–d) Vista superior (proximal) de esporos encontrados no local, com forma geral levemente triangular, observados ao microscópio óptico. (b) Desenho reconstruindo, de forma aproximada, como é o esporo visto de cima. (e) Imagem obtida em microscópio eletrônico mostrando a face inferior (distal) de um esporo, com superfície predominantemente coberta por pequenas saliências arredondadas. (f) Visão geral de vários esporos observados juntos no microscópio eletrônico. (g) Imagem aproximada da face superior de um esporo, destacando linhas, margens e áreas entre as saliências. Ao fundo, um segundo esporo mostra a face inferior, com saliências alongadas que às vezes se conectam entre si, formando um padrão rugoso.
5) Reconstrução do visual da planta - Crédito - Salvi et al. (2025)
6) Diferentes vistas do material estudado (veja a legenda no texto para mais contexto) - Crédito - Salvi et al. (2025). Franscinella riograndensis gen. nov. et comb. nov. (a) Exemplar mostrando a transição entre a parte estéril (seta branca) e a parte fértil (seta preta). (b) Fragmento de um ramo estéril. (c) Fragmento de um ramo fértil. (d) Ramo fértil apresentando bifurcação simétrica. (e) Vista geral de um exemplar relativamente grande, com o topo preservado. (f) Detalhe do topo do exemplar mostrado na imagem “e”.